24 de maio de 2013

Texto de João das Neves sobre o espetáculo:" Relampião"



Dois grupos jovens, dedicados ao teatro de rua, a Cia Paulicea e a Cia do Miolo se uniram para nos apresentar o espetáculo "Relampião".


Relampião pretende reviver a lendária e emblemática figura do cangaceiro, associado aqui à luta cotidiana de todos aqueles que, a ferro e fogo,fugindo da seca, da semi escravidão imposta pelo latifúndio,que, os relega à condição de miserabilidade, buscam nas cidades grandes, melhores condições de vida.

Tudo isso soa a um discurso eternamente repetido. De boas intenções o inferno está cheio.

E, não bastariam elas para fazer de Relampião um espetáculo atraente, alegre e que pudesse a levar um espectador tão fluido como o do teatro de rua a uma reflexão sobre sua própria realidade, por próxima que fosse.

Espetáculos de rua frequentemente iludem seus realizadores. Com um público quase sempre numeroso, afinal como bem diz o nome de um de nossos mais prestigiados grupos o espetáculo “Ta na rua “. E, independente de sua qualidade, já se faz simpático por estar ali, gratuitamente, à nossa disposição. Quebrando nossa rotina, convidando-nos a uma solidariedade descomprometida etc.

Mas para que atinja seus objetivos nada disso é suficiente.

É freqüente, cada vez mais, a existência de espetáculos descuidados que pensam se justificar pelo simples fato de estarem na rua. De oferecerem gratuitamente os seus trabalhos. Julgam-se, por isso, populares, comparando-se, e não sem certo ar de superioridade, às manifestações espontâneas de nosso povo. Esquecem-se do essencial. Que essa “espontaneidade” foi construída durante dezenas,centenas de anos de silenciosa decantação. De uma prática que se solidificou e sofisticou através de gerações,podendo ser comparada em qualidade e rigor artístico a qualquer manifestação artística da norma culta.

Assim, os reisados, os bumba meu boi, as escolas de samba, ou o congado mineiro,entre muitas outras, são grandes espetáculos épicos, de óperas populares. Espetáculos que, partindo de matriz religiosa como todo o bom teatro, se oferecem ao público da Polis com uma profundidade e excelência que pouquíssimos de nossos palcos logram atingir..

Toda essas considerações são fruto do impacto causado em nós pela apresentação de “Relampião”que assistimos na 7ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas (Jardim Julieta – Zona Norte –São Paulo).

Ali estava um trabalho envolvente. Um trabalho capaz de fazer uma releitura criativa do significado das carrancas de proa do Rio S. Francisco, das folias e reisados, das esculturas em madeira das Zefas,dos desenhos e pinturas das

Marias Lira, das figuras em barro dos Vitalinos e Ulisses, dos cavalos marinhos, frevos , cavalhadas, das procissões de semana santa sobre os tapetes efêmeros

e coloridos de pos de serra nas ruas de Ouro Preto, da riqueza percussiva dos reinados negros dos congos etc. Não meras reproduções parafolclóricas; Mas a apropriação poética de nossas manifestações mais queridas; para um instante de afirmação de nossa identidade e reflexão sobre o Brasil que temos e o Brasil que queremos..




( João das Neves é Autor, tradutor, diretor, ator e iluminador teatral. Dirigiu o setor de Teatro de Rua, do Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes (UNE) até 1964, quando a entidade foi extinta pela ditadura. Ainda em 1964, foi um dos fundadores do histórico Grupo Opinião. Cursou Prática em Ciências Teatrais, na Alemanha, estagiando no setor de peças radiofônicas da Westdeutscher Rundfunk. Dirigiu óperas contemporâneas como “Continente Zero Hora”, de Rufo Herrera, e “Corpo Santo”, de Jorge Antunes, além de roteirizar e dirigir shows da MPB. Escreveu e dirigiu “O último carro”, ganhador de mais de 20 prêmios, entre eles o Golfinho de Ouro, Moliére e o prêmio da Bienal Internacional de São Paulo. É autor de “Mural mulher” e “Café da manhã”, entre outros. Foi indicado como melhor diretor ao Prêmio Shell de 2007 (“Besouro cordão de ouro”) e de 2009 (“A farsa da boa preguiça” ).

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